Em Guatambu (SC), oito adolescentes identificaram que eram vítimas em ambiente familiar após ciclo de palestras
PORTO VELHO, RO - Após um ciclo de palestras sobre educação sexual, na cidade de Guatambu, em Santa Catarina, oito adolescentes identificaram que eram vítimas de abusos sexuais em ambiente familiar. As denúncias, em maio deste ano, aconteceram numa sequência de aulas, palestras e rodas de conversa com educadores em que os alunos eram estimulados a denunciar toques inadequados em seu corpo. Detalhado em relatório do Conselho Tutelar do município e encaminhado à polícia para investigação, o caso não é isolado. Para especialistas, a educação sexual — que deveria ser parte do currículo escolar para 73% de brasileiros ouvidos em recente pesquisa pelo Datafolha — tem efeito concreto no combate a abusos contra crianças e adolescentes.
Para 91% dos entrevistados, o tema em sala de aula pode prevenir futuros abusos, o que trouxe o debate — relegado a segundo plano durante o governo do presidente Jair Bolsonaro — de novo à tona. Nos últimos anos, a educação sexual foi tratada como um tabu. De acordo com levantamento da Human Rights Watch, divulgado em maio, entre 2014 e 2022, foram apresentados 217 projetos de lei na contramão do que estudiosos orientam sobre o assunto. Todos eles visavam a proibir conteúdo sobre gênero e sexualidade em escolas públicas. Para a ONG, a importância da educação sexual tem ficado a reboque de interesses políticos.
— Ainda existe um mito de que educação sexual é ensinar a criança sobre relações sexuais. Há pessoas ainda mais reacionárias, que acreditam que é ensinar pornografia. Os conteúdos que trabalhamos com crianças e adolescentes envolvem anatomia, fisiologia, responsabilidade, autoestima, o “sentir-se confortável com o próprio corpo”, consentimento, habilidade de diálogo. É para a criança saber que é dona do próprio corpo, o que a torna capaz de dizer, por exemplo, que não gosta de determinado toque — explica Caroline Arcari, pedagoga e autora do livro “Pipo e Fifi: ensinando proteção contra violência sexual” para meninos e meninas acima de 3 anos.
Toque do “sim” e do “não”
No texto, a autora explica o que são toques de cuidado (abraços e cafunés) e os que podem ser considerados abusivos. Ela os classificou como toques do “sim” e do “não”:
— Nossos pais diziam que não deveríamos aceitar doces de estranhos justamente para evitar violência sexual. Agora, porém, compreendemos que a violência sexual é perpetrada por pessoas do convívio familiar.
A leitura de “Pipo e Fifi” surtiu efeito em Itumbiara, em Goiás. Depois de atividades com o livro, uma menina — cuja idade não foi revelada — disse que era abusada pelo avô, de 45 anos. Ela expressou a violência que vivia dentro de casa por um desenho que foi entregue à professora. Ao ser questionada, contou ainda que o avô lhe pedia segredo. A denúncia passou a ser investigada pela polícia.
Professores e educadores explicam que a conversa franca, respeitando o entendimento e o vocabulário da criança, é a chave para que seja possível dotá-las de informações que podem protegê-las de um crime. Andrea Taubman, autora do livro “Não me toca, seu boboca”, faz visitas a escolas em que conversa com crianças e preparou uma apresentação específica para permitir que eles tenham acesso à informação de forma clara e sem constrangimentos. Ela criou uma narrativa em que Ritoca, uma coelhinha, passa por uma história “meio difícil de entender, muito difícil de falar”, como diz o livro. Taubman diz que a metáfora é uma forma de fazer a criança perceber que ela pode pedir ajuda antes de ser agredida sexualmente.
— Antes de o agressor ter acesso ao corpo (da criança), há uma etapa de convencimento, porque ele diz que aquilo é algo normal. No livro, eu quis escrever uma história preventiva, que alertasse como acontece a dinâmica interacional do abuso sexual — ressalta, observando que soube de um caso em que o método ajudou uma criança de 5 anos, de uma escola pública de Rondônia, que revelou abusos dos primos.
Sem conversa, a dúvida
No dia a dia das escolas, a falta de um conteúdo voltado para educação sexual é visto como uma porta de entrada para abusadores na vida das crianças. O levantamento do Human Rights Watch indica que, ao se afastar do debates sobre “gênero e sexualidade”, as unidades de ensino fogem também de esclarecimentos importantes sobre orientação sexual, por exemplo.
Amanda Sadalla, da Serenas, uma ONG voltada a garantir direitos reprodutivos de meninas e mulheres no Brasil, explica que crianças e jovens vítimas de violência sexual, muitas vezes, ficam inseguros e podem até perceber que algo errado aconteceu, mas não sabem como relatar o problema por falta de conhecimento sobre o assunto e sobre as particularidades do próprio corpo.
— Muitas vítimas sabem que o que aconteceu com elas foi violência, mas não necessariamente conseguem nomear. Se não há espaço para falar sobre isso, é algo que fica embaixo do tapete causando danos à saúde física e mental. Eu tenho uma aluna que levou um ano, após o trabalho que fizemos, para dizer que tinha entendido que sofreu exploração sexual. Não é tão rápido, não é tão simples — diz a especialista.
Amanda explica que diante da dificuldade de desvendar casos do tipo é fundamental que professores também estejam munidos de informações para acolher e colaborar com os estudantes. É preciso, ela explica, uma rede de apoio. A ideia é endossada pelo pedagogo Ricardo Desidério, da Universidade Estadual do Paraná.
— O professor tem que estar atento aos comportamentos. Se a criança está repetidamente com a mão nas partes íntimas e você está dando aula, retire a mão, coloque na mesa, dê um lápis, não dê bronca — orienta Desidério. — Se a situação se repetir mais vezes, chame os pais, e pergunte se a criança não tem alergia ou coceira. Quem pode dar esse diagnóstico de abuso é o médico, temos que ser cautelosos. Mas eu digo aos meus alunos (que são professores) que precisam ficar atentos porque a criança denuncia o que está sofrendo através de sinais. Não podemos ser coniventes.
Para 91% dos entrevistados, o tema em sala de aula pode prevenir futuros abusos, o que trouxe o debate — relegado a segundo plano durante o governo do presidente Jair Bolsonaro — de novo à tona. Nos últimos anos, a educação sexual foi tratada como um tabu. De acordo com levantamento da Human Rights Watch, divulgado em maio, entre 2014 e 2022, foram apresentados 217 projetos de lei na contramão do que estudiosos orientam sobre o assunto. Todos eles visavam a proibir conteúdo sobre gênero e sexualidade em escolas públicas. Para a ONG, a importância da educação sexual tem ficado a reboque de interesses políticos.
— Ainda existe um mito de que educação sexual é ensinar a criança sobre relações sexuais. Há pessoas ainda mais reacionárias, que acreditam que é ensinar pornografia. Os conteúdos que trabalhamos com crianças e adolescentes envolvem anatomia, fisiologia, responsabilidade, autoestima, o “sentir-se confortável com o próprio corpo”, consentimento, habilidade de diálogo. É para a criança saber que é dona do próprio corpo, o que a torna capaz de dizer, por exemplo, que não gosta de determinado toque — explica Caroline Arcari, pedagoga e autora do livro “Pipo e Fifi: ensinando proteção contra violência sexual” para meninos e meninas acima de 3 anos.
Toque do “sim” e do “não”
No texto, a autora explica o que são toques de cuidado (abraços e cafunés) e os que podem ser considerados abusivos. Ela os classificou como toques do “sim” e do “não”:
— Nossos pais diziam que não deveríamos aceitar doces de estranhos justamente para evitar violência sexual. Agora, porém, compreendemos que a violência sexual é perpetrada por pessoas do convívio familiar.
A leitura de “Pipo e Fifi” surtiu efeito em Itumbiara, em Goiás. Depois de atividades com o livro, uma menina — cuja idade não foi revelada — disse que era abusada pelo avô, de 45 anos. Ela expressou a violência que vivia dentro de casa por um desenho que foi entregue à professora. Ao ser questionada, contou ainda que o avô lhe pedia segredo. A denúncia passou a ser investigada pela polícia.
Professores e educadores explicam que a conversa franca, respeitando o entendimento e o vocabulário da criança, é a chave para que seja possível dotá-las de informações que podem protegê-las de um crime. Andrea Taubman, autora do livro “Não me toca, seu boboca”, faz visitas a escolas em que conversa com crianças e preparou uma apresentação específica para permitir que eles tenham acesso à informação de forma clara e sem constrangimentos. Ela criou uma narrativa em que Ritoca, uma coelhinha, passa por uma história “meio difícil de entender, muito difícil de falar”, como diz o livro. Taubman diz que a metáfora é uma forma de fazer a criança perceber que ela pode pedir ajuda antes de ser agredida sexualmente.
— Antes de o agressor ter acesso ao corpo (da criança), há uma etapa de convencimento, porque ele diz que aquilo é algo normal. No livro, eu quis escrever uma história preventiva, que alertasse como acontece a dinâmica interacional do abuso sexual — ressalta, observando que soube de um caso em que o método ajudou uma criança de 5 anos, de uma escola pública de Rondônia, que revelou abusos dos primos.
Sem conversa, a dúvida
No dia a dia das escolas, a falta de um conteúdo voltado para educação sexual é visto como uma porta de entrada para abusadores na vida das crianças. O levantamento do Human Rights Watch indica que, ao se afastar do debates sobre “gênero e sexualidade”, as unidades de ensino fogem também de esclarecimentos importantes sobre orientação sexual, por exemplo.
Amanda Sadalla, da Serenas, uma ONG voltada a garantir direitos reprodutivos de meninas e mulheres no Brasil, explica que crianças e jovens vítimas de violência sexual, muitas vezes, ficam inseguros e podem até perceber que algo errado aconteceu, mas não sabem como relatar o problema por falta de conhecimento sobre o assunto e sobre as particularidades do próprio corpo.
— Muitas vítimas sabem que o que aconteceu com elas foi violência, mas não necessariamente conseguem nomear. Se não há espaço para falar sobre isso, é algo que fica embaixo do tapete causando danos à saúde física e mental. Eu tenho uma aluna que levou um ano, após o trabalho que fizemos, para dizer que tinha entendido que sofreu exploração sexual. Não é tão rápido, não é tão simples — diz a especialista.
Amanda explica que diante da dificuldade de desvendar casos do tipo é fundamental que professores também estejam munidos de informações para acolher e colaborar com os estudantes. É preciso, ela explica, uma rede de apoio. A ideia é endossada pelo pedagogo Ricardo Desidério, da Universidade Estadual do Paraná.
— O professor tem que estar atento aos comportamentos. Se a criança está repetidamente com a mão nas partes íntimas e você está dando aula, retire a mão, coloque na mesa, dê um lápis, não dê bronca — orienta Desidério. — Se a situação se repetir mais vezes, chame os pais, e pergunte se a criança não tem alergia ou coceira. Quem pode dar esse diagnóstico de abuso é o médico, temos que ser cautelosos. Mas eu digo aos meus alunos (que são professores) que precisam ficar atentos porque a criança denuncia o que está sofrendo através de sinais. Não podemos ser coniventes.
Fonte: O Globo
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