O que há por trás da disputa sobre as horas destinadas ao Novo Ensino Médio

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O que há por trás da disputa sobre as horas destinadas ao Novo Ensino Médio

O relatório apresentado no Senado reduz as horas de formação geral básica dos estudantes para 2.200 horas, retrocedendo em relação à proposta da Câmara

Porto Velho, RO - O relatório substitutivo ao projeto do Novo Ensino Médio, apresentado pela senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), propõe reduzir as horas destinadas à formação geral básica dos estudantes para 2.200 horas. Com a proposta, 800 horas serão destinadas à formação diversificada, compondo as 3 mil horas previstas em lei para toda a modalidade.

O texto permite ainda que horas da formação básica sejam desviadas para formação técnica/profissional, desde que os cursos ultrapassem 800 horas, o mínimo exigido pelo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Um curso de mil horas, por exemplo, poderá ter 200 horas da formação geral básica poderão ser realocadas; em 1.200 horas, 400 poderão ser destinadas para conteúdos técnicos.

De modo geral, o texto representa um retrocesso em relação à proposta aprovada na Câmara, que havia restabelecido 2.400 horas para a formação geral básica, com mais 600 horas para a formação diversificada.

O relatório da senadora foi apresentado à Comissão de Educação na terça-feira, dia 12, onde recebeu um pedido de vista coletiva pelo presidente da Comissão, o senador Flávio Arns (PSB-PR), adiando a votação da matéria sem data definida.

ParaMônica Ribeiro da Silva, professora titular na Universidade Federal do Paraná e coordenadora do Observatório do Ensino Médio, a divergência sobre as horas destinadas ao Ensino Médio tem como pano de fundo uma encruada disputa acerca da formação técnica e profissional da rede pública. Segundo ela, a mudança favorece organizações como o Sistema S, além de governadores e secretários estaduais de educação que buscam estabelecer essas parcerias lucrativas.

“A redução das horas destinadas à formação geral básica é feita justamente para adequar as horas dessa formação técnica ao previsto no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. E como as escolas públicas de Ensino Médio não tem condições de oferecer esses cursos porque não tem laboratórios, professores etc, essa oferta só vai poder ocorrer via parcerias”, explica.

Confira a entrevista seguir.

CartaCapital: Como a senhora avalia o relatório entregue pela senadora Dorinha?

Mônica Ribeiro: Nós só chegamos às 2.400 horas depois de muita pressão sobre o Ministério da Educação. Posto isso, eu considero um retrocesso o que a senadora Dorinha apontou em seu relatório. Além de a oferta do Ensino Médio no Brasil ser muito desigual, temos 85% das matrículas da etapa em rede pública estadual. Ou seja, estamos falando de uma grande parcela da população que só tem na escola pública o acesso ao conhecimento. Então, não dá pra você ter uma formação geral básica tão reduzida como essa que está sendo proposta.

CC: E o que explica essa disputa sobre as horas?

MR: O que mais está em disputa hoje é o itinerário da educação profissional. A lei que instituiu a reforma do ensino médio possibilitou que a oferta da formação técnica e profissional fosse feita em parcerias com outras instituições; isso está mantido no relatório da senadora que aponta ela deverá ser feita ‘preferencialmente’ por instituições públicas, mas isso não diz de uma obrigatoriedade.

Isso desperta um interesse político no setor privado, que tem interesse em firmar essas parcerias, caso do Sistema S e de outras organizações. A redução das horas destinadas à formação geral básica é feita justamente para adequar as horas dessa formação técnica ao previsto no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. E como as escolas públicas de Ensino Médio não tem condições de oferecer esses cursos porque não tem laboratórios, professores etc, essa oferta só vai poder ocorrer via parcerias.

CC: Mas como equalizar essa questão, se a senhora mesmo reconhece que as escolas públicas não tem condições de oferecer essa formação técnica?

MR: O que a gente defende é a oferta do Ensino Médio integrado pelas escolas, que prevê um currículo único direcionado à formação geral e à formação técnica. Só que isso depende de mais investimentos. O governo Lula fez isso, em 2004, quando previu, via decreto, a integração entre o ensino médio e a educação profissional para estudantes concluintes do ensino fundamental, e a oferta nas instituições de ensino públicas [o decreto 5154/2004 previa a oferta concomitante, em parceria com outras instituições apenas aos estudantes que já estivessem cursando o Ensino Médio].

Com a mudança proposta pela Reforma do Ensino Médio, os estados estão cada vez mais encerrando o modelo integrado, para aderirem a essas parcerias, como é o caso do Paraná. Há, por exemplo, uma parceria de um curso técnico ofertado a distância por uma faculdade privada que nem sequer conhecia as escolas. Eram aulas transmitidas pela televisão.

CC: E quais são os riscos dessas parcerias para a educação pública e para os estudantes?

MR: Primeiro, temos a questão da gestão do recurso público, oriundo de impostos, e que deveria ser responsabilidade do setor público e não do privado. A outra questão é a qualidade da formação que é oferecida a esses estudantes. Eles estão perdendo conteúdos gerais básicos, tendo a sua formação científica prejudicada, e colocando em risco a participação no Enem, por exemplo, e o acesso ao ensino superior.

Outro ponto que também preocupa, e consta no relatório da senadora, é a possibilidade de que o ensino médio seja ofertado à distância, ainda que em caráter excepcional, o que também pode precarizar a qualidade. Isso não deve constar na Lei de Diretrizes e Bases, mas ser regulamentado à parte em casos de urgência, como na pandemia.

CC: Temos observado movimentos como a entrega da gestão das escolas à iniciativa privada nos estados do Paraná e São Paulo. Também há alertas sobre a “plataformização” da educação. Como a senhora avalia?

MR: Todos eles, inclusive a disputa sobre as horas do Ensino Médio, têm relação entre si. É sobre o movimento de privatização que vem avançando sobre a escola pública, tanto para disputar o tipo de currículo das escolas, bem como parte do recurso público de financiamento. Veja só o que aconteceu no Paraná, onde 200 escolas foram entregues à iniciativa privada. É a desvalorização do caráter público do sistema de ensino brasileiro.

CC: No início da entrevista, a senhora mencionou que foi necessária pressão sobre o Ministério da Educação para reconsiderar as 2.400 horas para o Ensino Médio. Como a senhora avalia a gestão de Camilo Santana?

MR: Uma das fragilidades do MEC hoje é a visão privatista da educação, trazida pelo próprio Camilo. A atuação dele no Ceará já era nesse modelo… de parcerias com empresas privadas, baseada em critérios de desempenho, focado mais em resultados do que no processo em si. Tudo isso tem feito com que o MEC não intervenha como deveria no avanço de privatização das escolas públicas. Hoje, o ministério dialoga muito mais com os representantes empresariais do que com as organizações científicas ou os próprios professores.

O próprio governo Lula, que tem uma aliança com o setor empresarial, tem deixado a desejar, veja só a greve das universidades federais. O governo anunciou a criação de novas universidades federais, mas como fazer isso se não há, minimamente orçamento para recompor salários, as perdas salariais acumuladas? Vamos criar novas universidades quando um técnico administrativo em educação ganha menos de 2 salários mínimos? Quem vai querer trabalhar nessas universidades? Há uma contradição muito grande no discurso, infelizmente.

Fonte: Carta Capital

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